sexta-feira, 12 de março de 2010

Qualquer semelhança com a realidade...


Fraternópolis

(Texto de Ferreira Gullar)




Nenhuma cidade conseguiu em tão pouco tempo acumular tanta riqueza e tanta desigualdade quanto Fraternópolis.

Localizada no golfo das Fúrias, numa península de terra fértil e subsolo muito rico, Fraternópolis logo compreendeu que devia precaver-se contra a cobiça dos vizinhos. Para manter-se independente, acumular capital, tratou de investir pesadamente na conquista das técnicas, e ao mesmo tempo equipar-se militarmente para se defender e, se possível, submeter as cidades vizinhas a seus interesses. Essas medidas deram ótimo resultado e de tal modo que, muito cedo, Fraternópolis se tornou uma potência econômica que, apoiada no desenvolvimento interno, tornara as cidades vizinhas mercado para seus produtos e, ao mesmo tempo, fornecedoras de matéria-prima para suas indústrias. Elas lhe vendiam, a baixo preço, minério de ferro, cobre, bauxita e petróleo, e lhe compravam produtos manufaturados, a preços altos. Desse modo, Fraternópolis enriquecia enquanto suas vizinhas empobreciam. Isso naturalmente gerava descontentamento naquelas cidades; esse descontentamento se transformou em revolta e, algumas vezes, em rebelião, que eram rapidamente esmagadas com a ajuda de Fraternópolis.1

No plano teórico, Fraternópolis dava-se ao luxo da franqueza. Quando os dominados reclamavam, alegando que as regras do jogo econômico, impostas a eles, contribuíam para agravar a desigualdade, o governo fraternopolitano concordava, mas afirmava que a desigualdade é o fulcro do desenvolvimento e da riqueza. "Somos a favor da desigualdade", disse certa vez Rígã, governador de Fraternópolis, "e o assumimos, em lugar de adotarmos a atitude hipócrita que promete uma igualdade incompatível com a realidade."

O bom resultado obtido na relação com as outras cidades serviu de modelo para o desenvolvimento interno de Fraternópolis, onde a desigualdade social se agravava a cada dia. Se em alguma época houve igualdade entre os fraternopolitanos, foi há tanto tempo que nem registro deixou na história da cidade. Talvez isso tenha ocorrido antes das primeiras guerras, quando se formou o exército que assegurou a sobrevivência da cidade. Em retribuição aos serviços prestados, os generais exigiram terras e braços escravos para cultivá-las. Assim teria começado a desigualdade, que só se acentuou com o passar do tempo.

Hoje, um número reduzido de ricos é dono das empresas industriais e comerciais, dono dos bancos e das fazendas. Noventa por cento dos habitantes quase nada possuem, senão sua capacidade de trabalhar e gerar mais riquezas para os ricos. A desigualdade foi se tornando tão escandalosa que alguns intelectuais sentiram-se na obrigação moral de denunciá-la. Mas logo os ideólogos do regime vieram a público reafirmar a tese de que a escolha não era entre a igualdade e a desigualdade, mas entre o desenvolvimento e a estagnação. "Está demonstrado pela história", escreveu R. Field, "que a tentativa de dividir igualmente entre todos a riqueza da sociedade conduz à inibição da WN produtiva. Engessa-se a economia e tolhe-se a iniciativa dos mais capazes. O resultado é a redução da atividade econômica, o desemprego e o agravamento da pobreza. A desigualdade não é um mal, mas um bem."2

Além dos argumentos de caráter econômico, os teóricos da sociedade desigual lançaram mão de outros, que pretendiam apoiar-se na própria natureza humana: "Os homens são essencialmente desiguais; nem todos têm a mesma inteligência, a mesma capacidade de trabalho nem o mesmo tirocínio empresarial; alguns são mais ambiciosos e persistentes, outros mais preguiçosos e desinteressados. Como então querer que tenham todos o mesmo ganho, recebam partes iguais do produto social? Pagar o mesmo a quem produz muito e a quem produz pouco não é instituir a injustiça? Pagar salário igual ao competente e ao incompetente não é desvalorizar a competência e desestimular a produção? Se a imposição da igualdade é tão injusta quanto a aceitação da desigualdade, esta tem a vantagem de tornar a sociedade mais rica, enquanto aquela conduz ao empobrecimento. Por isso torna-se inevitável concluir que a desigualdade é mais justa que a igualdade."3

Como a tese da sociedade desigual não convencia os defensores da sociedade igualitária, que passaram a fazer proselitismo no meio da grande massa de assalariados, o governo reagiu, desencadeando intensa campanha publicitária. O rádio, a televisão e os jornais estampavam diariamente artigos e anúncios defendendo a desigualdade como o motor do desenvolvimento econômico e do bem-estar social. Nos bairros, faixas e outdoors afirmavam: "Só a desigualdade produz riqueza." Funcionários do Ministério do Bem-Estar realizavam conferências nas escolas de primeiro e segundo graus, nas associações de moradores, nos clubes, nas maternidades, nos hospitais e penitenciárias, para convencer as pessoas de que a melhor sociedade é a sociedade desigual. E conseguiram, tanto assim que no desfile carnavalesco daquele ano, os sambas-enredo exaltavam a desigualdade e a competição.

Os defensores da tese contrária ou se calaram ou mudaram de cidade.

1 - Na verdade, Fraternópolis contava, para aumentar seus lucros, com a colaboração dos governantes das cidades vizinhas, que se deixavam corromper. Por isso, armava os exércitos daquelas cidades, a fim de que eles contivessem o descontentamento popular; quando esse descontentamento atingia as forças armadas, as tropas fraternopolitanas intervinham, em defesa do governo corrupto; quando - o que era raro - um governante se rebelava, Fraternópolis induzia o exército a derrubá-lo.

2 - Esse artigo de Field, publicado no Correio de Fraternópolis (13/5/89), trazia, ironicamente, a seguinte epígrafe: "Mais la vision de la justice est um plaisir de Dieu seul", Jean-Arthur Rimbaud.

3 - A desigualdade justa , R. Field, Ed. Abril, Fraternópolis, 1870.

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